Na abertura
de seu épico documentário “Shoah” de 1985, o diretor francês Claude Lanzmann
reconta a historia de Simon Srebnik que aos 13 anos de idade, sobreviveu a um
tiro na cabeça, na última “limpeza“ de judeus que os alemães tentaram fazer
apenas dois dias antes da chegada do exército vermelho no campo de extermínio de
Chelmno na Polônia.
Srebnik foi um
dos dois únicos sobreviventes de Chelmno, aonde mais de 300 mil judeus foram
exterminados. Chelmno era um dos seis campos de extermínio na Polônia, junto
com Treblinka, Sobibor, Auschwitz-Birkenau, Belzec e Majdanek.
Lanzmann fez Simon
Srebnik retornar ao vilarejo de Chelmo, 40 anos depois não só para filmar suas
reações, mas ouvir a sua narrativa, a dos moradores locais e a dos
perpetradores do maior genocídio da história.
Quando os
locais viram Srebnik se lembraram dele, por causa de sua voz porque os nazistas
o forçavam a cantar para eles, e disseram que estavam felizes em vê-lo. Eles contaram
que ele parecia um cadáver naquela época, e que "não podiam não
saber" o que estava acontecendo ao lado. "Os judeus gemiam de fome",
disse um morador. E, no entanto, embora soubessem que os judeus estavam
passando fome e sendo mortos diariamente em caminhões de gás, os moradores de
Chelmo disseram que a razão pela qual os nazistas queriam matá-los é
"porque eles eram os mais ricos". Que suas malas - mantidas na igreja
local - estavam "cheias de ouro", e que "eles também tinham ouro
em suas roupas" e "objetos de valor".
Neste ponto
da entrevista, o antissemitismo subiu a um nível desagradável - do judeu
ganancioso e amante de ouro - para outro: os assassinos de Cristo. "Os
judeus condenaram o inocente Cristo à morte", parecia um detalhe
pertinente para um morador, que alegou que o rabino de Chelmo chegou a confessar
sua culpa pela morte de Jesus.
Em outras
palavras, eles estavam contentes de ver Srebnik vivo - mas se tivesse sido
assassinado, o teria merecido.
Mais da
metade dos seis milhões de judeus assassinados no Holocausto eram poloneses. Não
foi por acaso que os campos de extermínio foram construídos na Polônia. Os
nazistas contavam com a colaboração e o antissemitismo da população local.
Onde os
governos e as populações se recusaram a colaborar, os nazistas tiveram muito
pouco sucesso em exterminar os judeus. Como já disse aqui anteriormente, foi o caso da Dinamarca, mas especialmente da Bulgária. Em março de
1943, os búlgaros saíram às ruas de todo o país contra as leis raciais que
afetavam os judeus e bloquearam os trilhos dos trens que os levariam à morte.
Isto convenceu o governo a impedir o assassinato dos 48 mil judeus búlgaros. E
isso apesar da Bulgária ter se aliado a Hitler durante a guerra!
Durante o
Holocausto, em Jedwabne, os poloneses trancaram centenas de judeus em um celeiro
e o atearam em fogo. Há muitas histórias de judeus que voltaram para suas casas
depois da guerra e foram assassinados ou ameaçados por poloneses. Um exemplo famoso
foi o Pogrom de Kielce de 1946 aonde 42 judeus foram assassinados acusados de
um libelo de sangue. Em 1968, após a Guerra dos Seis Dias, o governo polonês
“expurgou” os judeus das forças armadas e de seus empregos, chamando-os de
quinta coluna. Mais de 20.000 judeus emigraram da Polônia nos anos subsequentes.
É
compreensível que a Polônia não goste da expressão "Campos de extermínio
Poloneses". Ninguém quer ser culpado de genocídio, mesmo que seja um termo
geograficamente correto, não político. Mas isto está bem longe da tentativa de
um país de não só negar seu papel neste capítulo negro da humanidade, mas
apaga-lo de vez. Esta foi a motivação desta lei que pune pessoas por
denunciarem a cumplicidade da Polônia e dos poloneses com os nazistas.
Na semana
passada parecia que a crise havia passado. A notícia circulou que o governo
polonês havia revisado a lei descriminalizando a conduta de acusar a Polônia e
os poloneses. O primeiro ministro polonês, Mateusz Morawiecki publicou uma
declaração conjunta com o premier israelense Benjamin Netanyahu aparentemente resolvendo
o impasse entre os dois países. Mas a crise voltou com toda a força na quinta-feira
quando a Polônia resolveu publicar o conteúdo da declaração em Hebraico nos
jornais de Israel e na língua de cada país da Europa. A Polônia nem se importou
que a declaração impunha a publicação da declaração somente em Inglês que fora
o texto acordado.
E o texto em
hebraico, alemão, francês e polonês adota completamente a versão distorcida da
história que a Polônia quer vender. O tapa na cara da Polônia foi tão
escandaloso que o Yad Vashem, o Museu do Holocausto e repositório de toda a
memória do genocídio judeu, categoricamente rejeitou a declaração, dizendo que ela
continha graves erros e decepções.
Primeiro, a
declaração compara a tragédia dos judeus do contexto histórico e da realidade
da Polônia ocupada dizendo que “algumas pessoas, de todas as origens, religião
e visões do mundo, revelaram seu lado negro durante aquela época”. Além da
insinuação escandalosa que judeus também “revelaram seu lado negro naquela
época”, os que revelaram este lado negro não eram sem identidade. Eles eram
poloneses católicos que colaboraram com as forças de ocupação nazista, que eles
supostamente odiavam, a perseguir os judeus poloneses.
Segundo, a
declaração equipara o antissemitismo com anti-Polonianismo condenando o
primeiro e rejeitando o segundo. Isto é um verdadeiro escândalo. Quem está
sendo atacado na rua por ser polonês em 2018? Enquanto isso, o antissemitismo
na palavra e na ação violenta está em ascensão.
É verdade que
a Polônia foi ocupada pelos nazistas. Ao contrário de outros países, ela não
tinha o seu próprio governo colaborador nazista – excluída a polícia. E também
é fato que o governo polonês no exílio puniu os colaboradores nazistas. Os
nazistas também mataram milhões de poloneses não judeus. Também sabemos que
haviam kapos judeus, ou “perpetradores judeus”, como Morawiecki os chama. E
houveram vários casos de poloneses que esconderam, protegeram e salvaram judeus
da morte. Todas essas declarações são verdadeiras. Mas nenhuma delas aborda o
problema real do por que a Polônia, depois de 73 anos do fim da guerra, se
sente compelida a punir qualquer um que diga que o Estado ou cidadãos poloneses
participaram do Holocausto.
E isso nos
leva à segunda questão: porque Netanyahu, filho de um historiador renomado,
concordou com esta palhaçada? Será que o beneficio de manter uma boa relação diplomática
e comercial com a Polônia, justifica o preço? Israel não está exatamente “isolada”.
Nos últimos dois meses três países mudaram suas embaixadas para Jerusalem, o príncipe
William da Inglaterra visitou o país, a Indonésia, o maior país muçulmano do
mundo decidiu permitir a visita de turistas israelenses, o primeiro ministro húngaro,
e o presidente filipino estão de viagem marcada.
Em geral, um
país pequeno como Israel, isolado em sua região e enfrentando ameaças de todos
os lados, não pode ser muito exigente quando se trata de construir laços com
outros países. Mas um limite deve ser traçado. Para o único estado judeu, o antissemitismo
e o Holocausto devem ser este limite.
Israel não
pode comprometer a verdade. Ela tem um imperativo moral de não deixar o mundo
ignorar o flagelo do antissemitismo, passado ou presente.
Parece digno Lanzmann
tenha morrido nesta semana aos 92 anos. E como ele escreveu em sua autobiografia:
"Eu não fiz o documentário 'Shoah' em resposta aos revisionistas e
negadores do Holocausto: não se discute com essas pessoas."
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